11 jun A RESPONSABILIDADE DE GUARDA DO PRONTUÁRIO DO PACIENTE NO CASO DE DESLIGAMENTO DO MÉDICO JUNTO À INSTITUIÇÃO E A POSSIBILIDADE DE PORTABILIDADE DOS DADOS DE SAÚDE
Por João Hercilio Leoveral de Oliveira
OAB/SC 34.058
Este pequeno estudo pretende abordar duas questões que certamente permeiam o cotidiano de médicos, clínicas e instituições hospitalares espalhadas por todo o país, especialmente nos dias atuais, onde a digitalização de prontuários e a adequação à Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD estão plenamente em voga, por força das Leis Federais n° 13.787/2018 e 13.709/2018.
Então, vamos às questões:
– Se o médico, por qualquer razão, decide deixar de atender na clínica ou instituição hospitalar onde os prontuários são mantidos, desvinculando-se dela completamente, terá ele direito ou dever de levar consigo a guarda dos prontuários dos pacientes atendidos por ele até então?
– E se o paciente decide mudar de médico ou instituição, poderá ele requerer a portabilidade integral dos seus dados de saúde para outro local?
Bom, apesar de cotidianas atualmente, referidas questões possuem certo grau de complexidade e não podem ser respondidas apenas com uma simples leitura da legislação. Para se chegar a uma possível conclusão, torna-se necessária também uma ampla abordagem em pareceres esculpidos ao longo dos anos pelos Conselhos de Medicina (Regionais e Federal), visto que, carente a previsão legislativa, são eles que detém competência para tal.
Como muito se sabe e restou expressamente definido no artigo 1° da Resolução CFM n° 1.638/2002, o prontuário médico é um documento único constituído de um conjunto de informações, sinais e imagens registradas, geradas a partir de fatos, acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e a assistência a ele prestada, de caráter legal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicação entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao indivíduo.
Nesse ponto, o Código de Ética Médica, em seus artigos 87, caput e §2°, definiu a obrigação do profissional médico de elaborar o prontuário de todos os seus pacientes, ao passo que deixou ao seu encargo OU da instituição ao qual é vinculado, a responsabilidade de guarda e conservação do referido documento. Guarda esta que deve perdurar por 20 (vinte) anos, conforme diretrizes estampadas na Resolução CFM n° 1.821/2007 (artigo 8°) e, mais recentemente, na Lei Federal 13.787/2018 (artigo 6°).
Como se vê, as informações constantes do prontuário médico pertencem unicamente ao paciente, cabendo ao profissional ou à instituição ao qual ele é vinculado, a responsabilidade por sua guarda, conservação e sigilo. Este último, por imposição exposta no artigo 89, do Código de Ética Médica, que veda a liberação de cópias do prontuário, salvo por solicitação do próprio paciente, para atender a ordem judicial ou para defesa do próprio médico que o redigiu.
Portanto, se os dados pertencem ao paciente e só podem ser disponibilizados para atender as 03 exceções específicas elencadas acima, inexistindo alguma delas, salvo melhor juízo, a instituição responsável pela guarda do documento não detém autorização legal para permitir que o profissional médico desvinculado do seu quadro de colaboradores possa levar consigo uma cópia do documento.
No entanto, repisa-se, se por ventura o paciente tiver interesse em conferir continuidade ao seu tratamento junto ao médico desvinculado, mesmo que em outra instituição, logicamente é direito seu requerer cópia do prontuário sob guarda do estabelecimento de origem para leva-lo ao novo local.
Ou seja, o que se defende ilícito aqui, é a simples liberação do prontuário ao médico que se desvincula da instituição, quando ausentes qualquer das exceções elencadas no artigo 89, caput, do Código de Ética Médica.
Inclusive, corroborando com este entendimento, colaciona-se abaixo alguns posicionamentos adotados por Conselhos Regionais de Medicina:
“Compete à instituição assistencial que alberga o paciente a obrigação de manter o prontuário arquivado por 20 (vinte) anos. (Vide Resolução CFM nº 1821/2001). […]. Caso um médico deixe de prestar serviço a XXX, não poderá retirar os prontuários de seus pacientes do arquivo da instituição. Caso o paciente necessite do seu prontuário, poderá requerer sua cópia e dispor o documento para o médico que quiser.” (Conselho Regional de Medicina do Estado de Minas Gerais. Parecer n° 23/2018).
“O prontuário médico pertence somente ao paciente. Ao médico, cabe, por dever ético, a sua abertura e toda sua elaboração, preenchendo-o adequadamente. Ao hospital cabe a função de fiel depositário” (Conselho Regional de Medicina do Estado de Santa Catarina. Parecer n° 25/96).
“conteúdo do prontuário pertence ao paciente, e não ao médico que o elaborou, não cabendo assim o fornecimento dos prontuários dos pacientes aos médicos sócios que saem de uma empresa. Tais prontuários devem ser mantidos sob a guarda da instituição de saúde”. (Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia. Parecer n° 04/05).
“[…] conclui-se que a guarda do prontuário médico compete à instituição que prestou atendimento ou ao médico assistente quando este não está ligado a uma instituição, como nos casos de consultórios, assegurando assim o direito do paciente e o sigilo obrigatório das informações contidas nestes documentos.” (Conselho Regional de Medicina do Estado do Mato Grosso do Sul. Parecer n° 06/2012).
Aliás, da própria Resolução 1.821/2007, expedida pelo Conselho Federal de Medicina, é possível destacar:
“Considerando que o prontuário do paciente, em qualquer meio de armazenamento, é propriedade física da instituição onde o mesmo é assistido – independente de ser unidade de saúde ou consultório – a quem cabe o dever da guarda do documento”
Portanto, o que se extrai de todo o elencado acima é que, uma vez originado o prontuário enquanto o médico ainda estava vinculado à instituição, será deste estabelecimento o dever de guarda do referido documento pelo prazo mínimo obrigatório previsto pela legislação, mantendo esta obrigação mesmo no caso de desvinculação do médico assistente.
Inexistindo, assim, portanto, qualquer dever ou direito do profissional em levar consigo cópia do documento, salvo se entregue pelo próprio paciente, por ordem judicial ou para sua própria defesa.
E isso conduz ao segundo ponto suscitado.
Afinal, para alguns, após a desvinculação do médico da instituição original, o paciente eventualmente poderia requerer, ao invés de simples cópia do prontuário, a “portabilidade” do referido documento, passando todo o seu conteúdo para a responsabilidade de uma nova instituição ou mesmo para o profissional que acabou desvinculado.
Bom.
A portabilidade dos dados médicos já é uma realidade nos Estados Unidos desde o dia 05 de abril de 2021, quando entrou em vigor a 21st Century Cures Act, legislação que tem por objetivo regulamentar o acesso e o compartilhamento dos dados médicos (denominado de medical-data-sharing), quando há prévia autorização do paciente.
Referida normativa traz uma regulamentação “tendência” no mundo todo e que logo deve chegar ao Brasil.
Especialmente diante da norma esculpida pela Lei Geral de Proteção de Dados, que autoriza o compartilhamento dos dados pessoais sensíveis nas hipóteses relativas à prestação de serviços de saúde, de assistência farmacêutica e de assistência à saúde, quando requerida pelo titular (Art. 11, §4°, inciso I).
Contudo, apesar dessa previsão tímida disposta na LGPD, coberta de vedações e exceções, imperioso reconhecer que, salvo melhor entendimento, em nosso país ainda não há legislação que regulamente de maneira efetiva a possibilidade de portabilidade dos dados médicos.
Ou seja, não há no Brasil norma que, como nos EUA, estabeleça as diretrizes e pressupostos autorizadores do referido procedimento (processos, protocolos, sistemas, interações e etc.). Situação que torna a prática em comento, se não vedada por ausência de previsão legal, ao menos muito difícil de ser praticada por falta de regulamentação na lei.
Afinal, um dos maiores entraves existentes para isso, é a completa ausência de comunicação entre os diferentes sistemas de informação utilizados pelas instituições, os quais, por serem desenvolvidos por empresas diferentes, seguem padrões próprios e distintos, resultando em uma completa ausência de interação entre os seus bancos de dados.
Diante disso, chega-se à conclusão de que, para existir a portabilidade dos dados em saúde, há de haver regulamento específico, capaz de predefinir um padrão de sistema e banco de dados a ser seguido pelos estabelecimentos e instituições. O que, de fato, inexiste nos dias atuais.
Assim, a conclusão passível de ser atingida é a de que, ausente regulamentação legal, resta muito difícil, senão impossível, a portabilidade dos dados médicos presentes no prontuário do paciente.
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