Informações genéricas em termo de consentimento não protegem médicos

Informações genéricas em termo de consentimento não protegem médicos

Por Pedro Corrales
OAB/SC 58.168

Imagine estar confiante de que fez tudo certo: explicou o procedimento ao paciente, mencionou que existem riscos, e até conversou sobre o assunto na presença de familiares. Anos depois, você se vê em um processo judicial arrastado por duas décadas e, ao final, é condenado a pagar indenização porque suas explicações foram consideradas “genéricas demais”. Este cenário não é uma hipótese – é o que aconteceu com dois médicos no caso emblemático julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2022, que estabeleceu um importante precedente sobre a validade do consentimento informado na prática médica brasileira.

Em março de 2002, um paciente com Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS) faleceu logo após o início da indução anestésica que precederia uma cirurgia para correção do problema. O caso chamou atenção não pela alegação de erro técnico durante o procedimento, mas por uma questão cada vez mais relevante na medicina contemporânea: a qualidade e especificidade das informações fornecidas ao paciente antes da intervenção.

Os irmãos do paciente falecido ajuizaram ação de indenização por danos morais contra o médico anestesista, o cirurgião e a clínica onde seria realizado o procedimento. O fundamento central do processo não era questionamento sobre a técnica empregada, mas sim a ausência de esclarecimentos detalhados sobre os riscos específicos relacionados às condições particulares do paciente, que era obeso e apresentava hipertrofia da base da língua – fatores que poderiam dificultar significativamente uma eventual intubação, como de fato ocorreu.

Após uma batalha judicial de duas décadas, com diversas decisões conflitantes, o STJ finalmente trouxe uma resposta definitiva à questão: consentimento genérico não é suficiente. A Terceira Turma do tribunal reformou o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte e condenou o cirurgião e o anestesista ao pagamento de danos morais à família do paciente.

O relator do caso, Ministro Marco Aurélio Bellizze, foi enfático ao abordar o que ele chamou de “blanket consent” (consentimento genérico): “Não se admite o chamado ‘blanket consent’, isto é, o consentimento genérico, em que não há individualização das informações prestadas ao paciente, dificultando, assim, o exercício de seu direito fundamental à autodeterminação.”

A decisão do STJ destacou um princípio fundamental na relação médico-paciente: a informação prestada deve ser clara e precisa, não bastando que o profissional de saúde informe, de maneira genérica ou com termos técnicos, as eventuais repercussões no tratamento. Isso comprometeria o consentimento informado do paciente, considerando a deficiência no dever de informação.

Mas o que caracteriza exatamente um “consentimento genérico” e por que ele é insuficiente? Segundo o acórdão, informações como “existem riscos na cirurgia” ou “todo procedimento tem riscos” não cumprem adequadamente o dever de informação. É necessário especificar quais são esses riscos e, mais importante, como eles se relacionam com as condições particulares do paciente.

No caso analisado pelo STJ, os depoimentos das testemunhas trazidos pelos médicos foram considerados “absolutamente genéricos”. O tribunal observou que “em nenhum momento foi dito pelo Tribunal de origem, após alterar o resultado do julgamento do recurso de apelação dos autores, que houve efetivamente a prestação de informação clara e precisa acerca dos riscos da cirurgia de apneia obstrutiva do sono, notadamente em razão das condições físicas do paciente”.

O que torna este caso ainda mais relevante para a prática médica atual é a observação do STJ de que, sendo “incontroverso que não houve consentimento informado por escrito, o Tribunal de Justiça somente poderia ter reformado o acórdão de apelação se houvesse alguma prova cabal de que o dever de informação fora devidamente prestado de forma clara e específica em relação ao paciente”.

Aqui está uma lição crucial: embora não exista obrigatoriedade legal de que o consentimento informado seja exercido mediante “termo” escrito, sua ausência gera enorme dificuldade para comprovar o cumprimento do dever de informação. Como destacou o Ministro Bellizze, “recomenda-se, por essa razão, sobretudo em casos mais complexos, em que há um maior incremento do risco, que o consentimento informado seja feito em documento próprio, por escrito e assinado, a fim de resguardar o profissional médico”.

O dever de informação não decorre apenas do Código de Ética Médica, que veda ao médico “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado”. Ele está fundamentado também no Código de Defesa do Consumidor, que garante ao consumidor “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, […] bem como sobre os riscos que apresentem”.

Vai além: o princípio da autonomia da vontade, com base constitucional e previsão em diversos documentos internacionais, preconiza a valorização do sujeito de direito por trás do paciente, enfatizando sua capacidade de se autogovernar, de fazer opções e de agir segundo suas próprias deliberações. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005, da UNESCO, é clara ao estabelecer que “qualquer intervenção médica preventiva, diagnóstica e terapêutica só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido do indivíduo envolvido, baseado em informação adequada”.

O que deve conter, então, um termo de consentimento para que ele cumpra efetivamente sua função? De acordo com o próprio acórdão do STJ, a doutrina indica que o dever de informar deve abranger diversos aspectos: o diagnóstico e o estado de saúde, meios e fins do tratamento, prognóstico, a natureza e consequências do tratamento, riscos e benefícios (tanto riscos frequentes quanto riscos graves) e riscos e consequências secundárias.

Mais importante: essas informações devem ser adaptadas às particularidades de cada paciente. No caso analisado pelo STJ, o tribunal destacou que “no caso do paciente, o dever de informação é ainda mais patente, haja vista que a patologia que o atingia (SAOS), o comportamento médico e a compleição física do paciente (obesidade e risco significativo) acentuam o caráter concreto do dever de informar”. Citou-se, inclusive, literatura médica trazida pelo próprio anestesista em sua defesa, que afirmava: “A intubação difícil é frequente em pacientes portadores de SAOS, devendo sempre ser levado em conta no momento da indução anestésica pelo risco de hipoventilação, podendo levar a quadros dramáticos”.

Há um aspecto pragmático que todo médico deve considerar: o ônus da prova. Como bem destacou o STJ, a responsabilidade de provar que o paciente foi devidamente informado recai sobre o médico, não o contrário. Nas palavras do acórdão: “O ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de informar e obter o consentimento informado do paciente é do médico ou do hospital, orientado pelo princípio da colaboração processual, em que cada parte deve contribuir com os elementos probatórios que mais facilmente lhe possam ser exigidos”. Na prática, isso significa que, sem um termo de consentimento detalhado e assinado, o médico fica em posição processual extremamente vulnerável.

Um detalhe interessante do julgamento foi a modulação do valor da indenização considerando a realidade da época dos fatos. O STJ reconheceu que a relação médico-paciente evoluiu significativamente nas últimas décadas, passando de um modelo “paternalista” ou “sacerdotal”, em que o paciente não participava das decisões sobre seu tratamento, para um modelo de “participação mútua” ou “contratualista”. Considerando que o fato ocorreu em 2002, quando a prática do consentimento informado detalhado ainda não era tão difundida, o tribunal reduziu o valor da indenização de R$ 50 mil para R$ 10 mil para cada autor.

Essa observação, porém, serve como alerta: se o caso ocorresse hoje, quando o dever de obter consentimento informado detalhado é amplamente conhecido e praticado, a indenização poderia ser significativamente maior. Como destacou o Ministro Bellizze, “fixar uma indenização tomando como base a realidade atual, no tocante à relação médico-paciente, para um fato que ocorreu há duas décadas, não se revela consentâneo com o princípio da razoabilidade”.

Você, como médico, pode estar se perguntando: como elaborar, então, um termo de consentimento que cumpra adequadamente sua função e me proteja juridicamente? Com base na jurisprudência do STJ, podemos extrair algumas diretrizes importantes:

O termo deve ser específico para cada procedimento e individualizado para cada paciente, contemplando suas particularidades clínicas;

A linguagem deve ser clara e acessível, evitando termos excessivamente técnicos que possam dificultar a compreensão pelo paciente;

O documento deve detalhar não apenas os riscos genéricos do procedimento, mas especialmente aqueles relacionados às condições particulares do paciente;

É importante informar não apenas sobre os riscos, mas também sobre os benefícios esperados e as alternativas de tratamento disponíveis;

O consentimento deve ser obtido com antecedência suficiente, permitindo que o paciente reflita sobre as informações e, se desejar, busque uma segunda opinião;

O documento deve ser assinado pelo paciente e pelo médico, com data claramente indicada.

O caso julgado pelo STJ nos lembra que o consentimento informado não é uma mera formalidade burocrática – é um instrumento de respeito à autonomia do paciente e, ao mesmo tempo, de proteção jurídica para o profissional médico. Como bem destacou o acórdão, ele “constitui não só um direito do paciente de participar de toda e qualquer decisão sobre tratamento que possa afetar a sua saúde, mas também garantia do médico que tem sua intervenção legitimada, diminuindo significativamente a probabilidade de pretensões judiciais em seu desfavor”.

A lição final é clara: em tempos de judicialização crescente da medicina, investir tempo na elaboração de um termo de consentimento detalhado e específico não é apenas uma exigência ética – é uma medida de proteção jurídica que pode evitar anos de desgaste processual e eventuais condenações. Mais do que isso, é a base para uma relação médico-paciente transparente e respeitosa, fundamentada na confiança mútua e no reconhecimento da autonomia do indivíduo sobre seu próprio corpo e saúde.

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