ANÁLISE DE CASO: ADVOGADO TEVE CELULAR APREENDIDO POR GRAVAR AUDIÊNCIA.

Guilherme Back Koerich
OAB 37.149

 

Nas últimas semanas, observou-se uma tensão crescente entre as prerrogativas da advocacia e as disposições legais relativas à proteção de dados pessoais. Uma manifestação emblemática desse conflito foi registrada em um incidente no qual um advogado procedeu à gravação de uma audiência criminal sem a notificação prévia de todas as partes envolvidas. A promotora de Justiça, ao perceber a gravação, interpelou o advogado, que se defendeu invocando o artigo 367 do Código de Processo Civil (CPC), o qual autoriza a gravação de audiências sem necessidade de consentimento dos gravados.

Contrapondo-se a essa interpretação, a promotora invocou a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), com ênfase na proteção da voz da testemunha gravada, configurando um potencial conflito entre a transparência processual e a proteção de dados pessoais. Diante do impasse, o juiz determinou a apreensão da gravação e a interrupção temporária da audiência.[1]

A gravidade do ocorrido não reside meramente no ato de apreensão do dispositivo de gravação, mas na potencial ameaça que tal precedente representa às liberdades fundamentais e à sacrossanta função da advocacia no sistema de Justiça. Ao adentrarmos na análise da questão, é imperioso que se esclareça, inicialmente, o conceito de tratamento de dados pessoais tal como delineado pela LGPD. Esta legislação, pilar da proteção da privacidade no ordenamento jurídico brasileiro, conceitua o tratamento de dados como qualquer operação realizada com dados pessoais. Esta definição abrangente, embora necessária à proteção do bem jurídico tutelado, requer uma interpretação ponderada quando aplicada às especificidades do exercício da advocacia, notadamente no que tange à documentação de atos processuais.

A LGPD, ao estabelecer dez bases legais que legitimam o tratamento de dados pessoais, não estabelece qualquer primazia do consentimento sobre as demais bases, entre as quais se destacam, para o contexto em apreço, a obrigação legal e o exercício regular de direitos em processos judiciais ou administrativos. O artigo 367 do Código de Processo Civil, ao autorizar expressamente a gravação de audiências pelas partes, configura uma obrigação legal e corrobora o exercício regular de direitos processuais, consolidando a gravação de audiências como prática legítima e necessária à salvaguarda dos interesses jurídicos das partes.

Ademais, a natureza pública das audiências, salvo disposição legal em contrário, reitera a prerrogativa dos advogados de registrar os atos processuais, prática esta que se insere no escopo da atuação advocatícia como instrumento de preservação da verdade processual e de salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais.

Ao se considerar o aludido episódio, torna-se evidente a necessidade de se distinguir, com a devida acuidade técnica e semântica, o tratamento de dados para fins legítimos e específicos da advocacia daquele realizado com desvio de finalidade.

Não se advoga aqui no sentido que o profissional jurídico, se considerado controlador (pois se não, sequer poderia invocar a LGPD), pode utilizar e compartilhar os dados pessoais como desejar, apenas porque teve autorização legal para coletá-los. Ao contrário. A utilização de registros de audiência para fins distintos daqueles inerentes à defesa, especialmente quando tais usos possam implicar violações a direitos da personalidade, deve ser objeto de escrutínio e, quando cabível, de sanção nos termos da legislação aplicável. Contudo, tal distinção não pode servir de subterfúgio para a restrição indevida das prerrogativas advocatícias ou para a mitigação do direito de defesa.

Portanto, a invocação da LGPD como fundamento para a apreensão de registros efetuados no legítimo exercício da advocacia não apenas desconsidera a natureza específica da atividade advocatícia, como também ameaça o equilíbrio e a independência indispensáveis ao pleno funcionamento do sistema de Justiça.

[1] https://www.migalhas.com.br/quentes/403902/advogado-aciona-oab-contra-juiz-que-o-impediu-de-gravar-audiencia

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